HISTÓRIA DA ESCOLA


CAMINHOS PERCORRIDOS PELA EDUCAÇÃO DE SURDOS

EM SÃO BERNARDO DO CAMPO




A Educação de Surdos em São Bernardo do Campo iniciou suas atividades em 1957, seguindo uma orientação oralista. Nessa visão, a surdez é concebida como uma patologia que deve ser “curada”, ou seja, tudo deve ser feito para que as crianças alcancem um suposto padrão de normalidade como prerrogativa para se integrarem à comunidade ouvinte. Essa abordagem educacional se traduz em uma metodologia de ensino para surdos cujos principais objetivos são o treinamento auditivo e o aprendizado da fala, ou oralização, como condição para a aprendizagem, em geral tardia, dos conteúdos escolares. A Língua de Sinais é vista como obstáculo à aquisição da fala e, portanto seu uso é proibido ou desestimulado.


Nas quatro primeiras décadas de sua existência, o projeto pedagógico da Educação de Surdos no município esteve alicerçado nestes pressupostos que, em geral, no Brasil, como em grande parte do mundo ocidental, serviram de base a quase todas as práticas pedagógicas com estudantes surdos até o final dos anos setenta (Moura, 2000).

As práticas de oralização são guiadas, em geral, por uma visão de linguagem como estrutura pronta e descontextualizada. Os árduos treinamentos fono-articulatórios exigidos dos alunos surdos reduzem o ensino da linguagem à mecanização de estruturas, suposta como condição para o ingresso (tardio e pouco provável) do aluno no mundo dos conhecimentos. 

Diante do pouco êxito verificado no desempenho acadêmico dos alunos, a escola de surdos, a partir do ano de 1989, deu início a um processo de reformulação em seus pressupostos pedagógicos, orientando seu trabalho por uma abordagem sócio-construtivista. Como esse enfoque teórico pressupõe que a construção do conhecimento se realiza a partir da interação entre aluno-aluno e aluno-professor, um problema emergiu: professores e alunos não compartilham de um sistema linguístico comum de comunicação, tornando praticamente impossível à interação para a construção conjunta de sentidos e de conhecimentos, dois pilares do enfoque sócio-construtivista que a escola passava a adotar.

O descompasso entre a tradição oralista e a visão de ensino-aprendizagem que a escola de surdos decidiu seguir desencadeou uma busca por estudos e reflexões que respaldassem o novo caminho. Assim, em meados de 1994, após cursos, estudos e longas discussões, a educação de surdos redirecionou sua proposta para a Comunicação Total, abordagem educacional para surdos criada no final da década de oitenta nos Estados Unidos, na tentativa de enfrentar o fracasso do oralismo, manifesta no precário desempenho acadêmico dos estudantes em várias partes do mundo (Lane, 1992; Moura, 2000).

Nessa abordagem, o professor pode recorrer a todos os meios de comunicação disponíveis para interagir com os alunos: Língua de Sinais, alfabeto digital, escrita, fala, pantomima, desenhos etc.. Desta forma a Língua de Sinais pôde reingressar na Educação de Surdos, porém pautada no bimodalismo – uso de sinais na estrutura da língua oral.  A Comunicação Total ainda é uma resposta metodológica centrada na língua oral. A Língua de Sinais passa a ser representada como mero instrumento para aquisição da língua majoritária, sendo utilizada como mais um recurso pedagógico, sem status de língua, o que continua levando implicações negativas ao ensino (Favorito, 2006). Como bem metaforiza Lane (1992, p.126):



O professor ao gesticular, ao mesmo tempo em que fala, tem a ilusão de que se faz compreender, tal como um piloto num simulador, cuja percepção lhe diz que está a aterrar um avião apesar de, na realidade, quando visto do alto de fora, estar ainda a voar sem rumo.








No final da década de noventa, constatadas as limitações da Comunicação Total nos resultados educacionais dos alunos, os profissionais da escola, insatisfeitos com os resultados obtidos nas suas práticas, buscaram novamente outros caminhos teóricos que os levaram a valorizar a Língua de Sinais como um sistema linguístico legítimo e a repensar o seu papel no processo de ensino-aprendizagem. Essas reflexões fizeram com que uma nova perspectiva educacional começasse a ser construída, pois à medida que a Língua de Sinais passa a ser entendida como um sistema pleno, os sujeitos surdos deixam de ser vistos como casos patológicos ou deficientes da comunicação e passam a ser olhados como uma minoria linguística. Em decorrência disso, e com base na crescente produção acadêmica de pesquisadores brasileiros e de estudiosos de várias partes do mundo acerca da Educação Bilíngue para Surdos (Ferreira Brito, 1993; Fernandes, 1990; Felipe, 1988, Quadros, 1997, Behares, 1993, dentre outros), a Educação de Surdos em São Bernardo do Campo, a partir de 1997, optou por um projeto educativo que se pauta por: 

1.  uma visão sócio-antropológica da surdez definida como diferença histórica e socialmente construída em práticas de significação e representações compartilhadas entre os surdos e como uma experiência visual e heterogênea (Skliar, 1998);
2.  uma educação bilíngüe que priorize a Língua de Sinais como língua natural e língua de instrução, e a aprendizagem do Português como segunda língua;
3.  um currículo pensado para e com os surdos que não se limita a simples circulação da Língua de Sinais no espaço escolar, mas que se propõe a dialogar com discursos, identidades e produções culturais dos surdos, isto é, com seus modos de significar o mundo como sujeitos discursivos.

Basicamente, os defensores da Educação Bilíngue advogam (e ainda lutam por isso) um projeto educativo que incorpore como princípios norteadores a utilização da Língua de Sinais como primeira língua e língua de instrução na escola (acesso à informação e construção de conhecimento) seguida da aprendizagem da Língua Portuguesa como segunda língua. Essa nova proposição levou à revisão de concepções e práticas pedagógicas baseadas na tradição da Educação Especial, na medida em que, ao considerar os surdos como uma minoria linguística, levava a um deslocamento das questões educacionais dos surdos: da medicalização da surdez, da visão colonialista em relação à comunidade surda e sua língua, para uma concepção sociocultural que concebe os surdos em sua diferença, acentuando aspectos positivos como língua, cultura, a História das comunidades surdas, suas lutas por direitos lingüísticos e civis conduzidas por suas entidades organizadas em muitos países do mundo. (Favorito, 2006)

A Proposta Curricular da Educação de Surdos em São Bernardo do Campo, que oferece atendimento educacional a crianças, jovens e adultos surdos na Educação Infantil e Ensino Fundamental, vem sendo construída, desde finais da década de noventa, a partir dessa perspectiva que reconhece e trabalha as “potencialidades educacionais” dos surdos no sentido apontado por Skliar (1998), isto é, “visando à organização de uma política educacional que reconheça a diferença” (p. 25). Reconhecer a diferença no campo da educação de surdos significa, em primeiro lugar, reconhecer os direitos que os surdos têm de desenvolver suas potencialidades linguísticas, culturais, comunitárias, identitárias. Incorporando essa reflexão, o projeto político e educacional da escola se move a partir da crença nas potencialidades dos surdos, que podem ser definidas assim segundo Skliar (1998, p. 25-29):


Potencialidade da aquisição e desenvolvimento da
Língua de Sinais como primeira língua

Como ocorre com os ouvintes em relação à aquisição da língua oral, as crianças surdas podem adquirir naturalmente a Língua de Sinais, desde que a família e/ou a escola lhes propiciem oportunidades de interação com adultos surdos proficientes. A Educação de Surdos em São Bernardo do Campo, reconhecendo o direito dos surdos à aquisição natural da Libras, orienta-se pela seguinte política linguística:


1.    assumir a Libras como língua de instrução e interação
no processo de ensino-aprendizagem.

2.    favorecer momentos de interação entre alunos com diferentes
níveis de proficiência na Libras;


3.    contar com instrutor surdo e professores ouvintes com domínio de Língua de Sinais;

 4.    oferecer cursos de Libras para os familiares visando
facilitar a comunicação entre pais e alunos.

Não é demais lembrar que, desde 1994, a importância da Língua de Sinais nos contextos escolares foi reconhecida em documento produzido em uma conferência realizada em Salamanca, Espanha, com a organização da UNESCO e a presença de representantes governamentais de todo o mundo. Com relação especificamente à Educação de Surdos, destaca-se o artigo 21 do capítulo II da Declaração de Salamanca:

As políticas educativas deverão levar em conta as diferenças individuais e as diversas situações. Deve ser levada em consideração, por exemplo, a importância da linguagem dos sinais como meio de comunicação para os surdos, e ser assegurado a todos os surdos acessos ao ensino da linguagem de sinais de seu país. Face às necessidades específicas de comunicação de surdos e de surdo-cegos, seria mais conveniente que a educação lhes fosse ministrada em escolas especiais ou em classes ou unidades especiais nas escolas comuns. (Corde, 1994, p. 30).

Mais recentemente, à semelhança de outros países, a Língua Brasileira de Sinais foi oficialmente reconhecida pela Lei Federal n° 10.436 de 24/04/2002, posteriormente regulamentada pelo Decreto Federal nº 5.626 de 22/12/2005.


Potencialidade de identificação das crianças surdas
com seus pares e com os adultos surdos

Os surdos têm o direito de construírem estratégias de identificação convivendo com seus pares, isto é, com outros surdos. As identidades surdas, necessariamente híbridas e em constante processo de transição só podem ser construídas e reconstruídas em espaços que propiciem interações significativas para as pessoas surdas.

Nesse sentido, é de grande importância a presença de instrutores surdos na sala de aula, pois além de favorecer a expansão das referências linguísticas, de vida e de mundo dos alunos contribui para uma representação positiva da surdez. A atuação de um adulto surdo como profissional não só contribui para a valorização da Língua de Sinais no contexto escolar, como propicia, sem dúvida, uma relação de confiança dos alunos surdos em suas identidades e potencialidades.


Potencialidade de uma vida comunitária e do
desenvolvimento de processos culturais específicos

As crianças surdas têm o direito de se desenvolver numa comunidade surda, pois é no convívio que se estabelece a identidade de cada pessoa na sociedade. Falar em cultura surda não equivale a “uma cultura patológica” ou um conjunto de crenças e valores dissociados das comunidades ouvintes. A noção de cultura é aqui concebida “a partir de um olhar de cada cultura em sua própria lógica, em sua própria historicidade, em seus próprios processos e produções” (Skliar, 1998, p. 28). É direito dos surdos conhecerem a História das línguas de sinais, da Educação de Surdos, o teatro, as brincadeiras, o humor, a literatura, as narrativas produzidas pelas comunidades surdas, dos movimentos de luta dos surdos.

É preciso, portanto, que o currículo da escola se comprometa em garantir a presença dessa diversidade, permitindo aos alunos contato com as manifestações culturais dos surdos.

O contato do sujeito surdo com as manifestações culturais dos surdos é necessário para a construção de sua identidade, caso contrário, sua experiência vai torná-lo um sujeito sem possibilidade de auto-identificar-se como diferente e como surdo, ou seja, com determinada identidade cultural. (Perlin, 2000, p. 24).


Potencialidade do desenvolvimento de estruturas,
formas e funções cognitivas visuais

A Educação de Surdos em São Bernardo do Campo orienta seu trabalho por uma visão de surdez como experiência visual. Entender a surdez como uma experiência visual não se restringe à dimensão visual constitutiva do sistema linguístico das Línguas de Sinais. Em consonância com Skliar (2003), quando se comenta que os surdos são sujeitos visuais, esse reconhecimento muitas vezes está restrito ao simples fato de as línguas de sinais serem produzidas e percebidas visualmente. Para o autor, no entanto, a experiência visual dos surdos vai muito além dos modos de produzir e compreender sinais, “envolve, na verdade, todo tipo de significações comunitárias e culturais” (p. 102) e é crucial nos processos de escolarização. Alguns exemplos dessa experiência visual citados pelo autor seriam: as formas de nomeação dos outros através de sinais que caracterizam traços visuais das pessoas; metáforas visuais; humor visual; a sugestão pelos próprios surdos de didáticas e estratégias visuais de ensino; a rotação do corpo nas tomadas e trocas de turno nos diálogos e para marcação de diferentes personagens em narrativas; literatura visual em Língua de Sinais (narrativas, poesias, lendas, etc.) etc.

De acordo com essa visão, duas pesquisadoras têm chamado a atenção para a relação entre experiência visual e a construção de conhecimentos nos processos educacionais de pessoas surdas:

Lebedeff (2004) levanta a hipótese de se considerar a possibilidade de um letramento visual, salientando a importância de os profissionais envolvidos com a educação de surdos refletirem sobre o papel da imagem na apropriação do conhecimento. Gesueli (2004) pesquisando o impacto da imagem nas práticas discursivas de alunos surdos também corrobora essa visão. (Favorito, 2006, p. 192).

E, por fim, recorrendo às palavras de uma professora e pesquisadora surda brasileira para a qual fazer uso de recursos visuais na comunicação para os sujeitos surdos representa:

“um resgate cultural, uma possibilidade de recriarmos no interior do currículo, nossa cultura, nossa língua, nossa comunidade, principalmente, representar a surdez enquanto uma diferença cultural e não uma deficiência. Isto significa olhar a surdez a partir de seus traços culturais afastando-se do olhar patológico, da enfermidade e da normalização”.

(Rangel, 1998, p. 81, grifos da autora).


Potencialidade de participação dos surdos no debate linguístico,
educacional, escolar, de cidadania

Para se deslocar da visão audiológica da surdez, que representa os surdos e suas línguas no campo da incapacidade, é preciso implementar um projeto de educação bilíngue em constante diálogo com os surdos e suas especificidades, que lhes garanta participação ativa nos rumos de sua escolarização. Reconstruir os significados, histórica e socialmente determinados sobre a surdez, os surdos e suas línguas parece ser o grande desafio e ao mesmo tempo o primeiro passo para a construção de uma educação de qualidade para e com os surdos. Nas palavras de Skliar (1998, p. 29):


A potencialidade de reconstrução histórica dos surdos sobre a sua educação e sua escolarização é, sem margem de dúvidas, um ponto de partida para uma reconstrução política significativa e para que participem, com consciência, das lutas dos movimentos sociais surdos pelo direito à Língua de Sinais, pelo direito a uma educação que abandone os seus mecanismos perversos de exclusão, e por um exercício pleno da cidadania. Reconstruir essa história é uma nova experiência de liberdade, a partir da qual se torna possível aos surdos imaginarem outras representações para narrarem a própria história do que significa o ser surdo.